Digital?
Muitas palavras são tão
naturais que não prestamos a devida atenção ao que escrevemos, falamos ou
ouvimos. Elas saem ou entram no nosso “sistema” de forma tão automatizada que
geralmente nem nos preocupamos em verificar sua classe gramatical, que função
exerce sintaticamente, seu gênero e número ou mesmo se o sentido que conhecemos
é o ideal para aquele contexto.
Lembro bem do dia em
que prometi a mim mesmo que seria mais atencioso com a minha própria língua. Eu
havia saído do consultório e estava em mãos com uma requisição para a
realização de determinado procedimento médico. Olhei, li e simplesmente
guardei a requisição sem procurar saber
o verdadeiro significado do que estava escrito.
No outro dia fui até a
Central de Atendimento ao Cliente. Tirei minha senha, aguardei pacientemente
chamarem meu número e finalmente me dirigi ao guichê. Uma linda moça me atendeu
e após alguns minutos de pesquisa em uma pasta pediu para que eu aguardasse mais
alguns instantes, pois ela não estava conseguindo localizar tal procedimento
médico. A atendente pegou a requisição e a levou até uma senhora que estava lá
no fundo da sala, sentada atrás de um enorme birô com um monte de papelada em
volta.
A senhora, que parecia
ser a chefe do setor, fez sinal para que eu entrasse. Pediu para que eu sentasse e atendi
prontamente. Estava me sentido como um réu durante um julgamento. Ela contou-me
que aquele procedimento não estava coberto pelo meu plano, uma vez que eu me
encontrava ainda no período de carência. O médico prescreveu quatro sessões e
eu teria que pagar cinquenta reais por cada uma.
Curioso, pedi a
requisição e a li novamente. Perguntei se ela poderia me explicar tal
procedimento, mas a mesma confessou que nos três anos que trabalha ali nunca
havia se deparado com um deste e não tinha o conhecimento de como era
realizado. Curiosa, ela passou a mão no telefone, digitou alguns números, falou
com alguém e finalmente me pediu que a acompanhasse.
Entramos em uma sala
onde havia um senhor alto, cabelos grisalhos, vestido de branco e parecendo tão
importante quanto um deus. A senhora lhe entregou a requisição. Após ler o que
ali estava escrito, observei um discretíssimo ar de riso no cantinho dos seus
lábios. Ele olhou para a mulher, olhou para mim e pude então sentir um frio na
espinha como se já soubesse que estava condenado.
Ele leu em voz alta o
procedimento: DILATAÇÃO DIGITAL ANAL. Procurei, em instantes, mentalizar cada
palavra e apelar para o que eu lembrava das aulas do meu professor de português.
Neste momento parecia que eu o ouvia dizer: “procure degustar, saborear e
digerir cada palavra que você fala, lê ou escreve”. E então comecei minha
investigação.
Dilatação é um
substantivo. Vem do verbo dilatar: alargar, aumentar de tamanho. Digital me
parecia algo moderno, como um equipamento de última geração e que resolvesse
tudo de forma rápida, eficiente e indolor. Bem, a última palavra dispensava
maiores esclarecimentos. Minha maior surpresa foi descobrir, após explicação do
médico, que “digital” não tinha o mesmo sentido que eu imaginava. A palavra vem
de digitus, que em latim significa
dedo. Por isso vivemos na era digital, onde tudo está ao alcance dos dedos.
Pronto. Tudo estava
esclarecido e, ruborizado, peguei de volta minha requisição e saí de fininho
daquela sala. Agora eu tinha que avaliar a possibilidade de pagar cinquenta
reais para cada “dedada” que levaria do proctologista. Mas, isto é assunto para
uma próxima crônica. Até lá!
Eronildo Ferreira
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